sexta-feira, agosto 11, 2006

Um jantar em Muros

(...continuação)
Passamos a maior parte do jantar a discutir a política internacional americana e o seu impacto no mundo, a situação actual no extremo e médio oriente, a anexação do Tibete pela China e as suas consequências, e de como todos gostaríamos de ir à Índia ainda que por motivos diferentes, enquanto o leitor de CDs da Bang & Olufsen vai passando a selecção de seis discos que fizemos para esta noite. O David Bowie está agora a cantar o this is not America.
O Goulash está realmente muito bom, e envolvido pelo delicado paladar da refeição e por uma das garrafas de Rioja que desapercebidamente puxei para perto de mim, deixo-me perder pelo ritmo das chamas, que dançam em intermitentes ondulações no topo das velas que estão pousadas no centro da mesa. Naquele círculo de luminosidade quente, que marca a diferença entre a semi-obscuridade e a nossa realidade, a minha realidade, onde o som das vozes facilmente se perde, consigo ainda ver os lábios a articularem supostas palavras, e gestos a enfatizarem animadas discussões...o mundo dos sentidos inverteu as prioridades. Perco-me nos lugares escuros da minha mente, correndo o mesmo perigo que um mergulhador que vagueia nas profundidades, mais profundas, do Oceano. Penso em tudo, sem ao mesmo tempo pensar em nada, reservando para cada imagem o tempo de um microssegundo passado em câmara lenta. Pedaços da conversa chegam até mim, depois de atravessarem milhões de anos luz: - Para mim – a voz do Jaime – em ultima instância, a função primordial do homem é ter filhos e constituir família. Nestas coisas do sentido da vida, devemos ser um bocado pragmáticos. E aliás, que mais pode haver?
- Que tal, realizar, concretizar, criar, amar, ajudar os outros, tornar o mundo um lugar melhor, combater o crime e a pobreza, dar voz aos indefesos...- diz o Vasco sem pausas. O Andreas, reparo agora pelo ronco, está estendido no sofá a dormir.
- Tu e a tua perspectiva Budista da vida! – diz o Pedro bebendo a seguir, o vinho que tem no copo de um só golo, depois continua num aparte - também acreditas nas tretas da reencarnação?
- Pedro! Não sou Budista, mas agradam-me algumas coisas desta filosofia oriental.
- Oh! Já sei – diz o Pedro com um ar enjoado – dar a vitória ao inimigo, blá-blá-blá, só podemos atingir a iluminação por meio da prática da meditação, blá-blá-blá, acumular Karma positivo para nos libertarmos do ciclo do sofrimento, ajudando, por exemplo – pausa, seguida de risos – o cabrão que nos matou o pai e violou a mãe. Concluindo, ser o Sr.Bonzinho-sou-otário-porque-gosto-que-abusem-de-mim.
Não sejas cínico – interrompo baixinho, num tom ausente – os ensinamentos budistas, ainda que utópicos para mim, são de vangloriar. Tentam criar uma sociedade melhor, onde o ser humano se respeite e não recorra à violência de cinco em cinco minutos para expôr os seus pontos de vista. – O Andreas está agora a babar-se.
- Temos que aprender a controlar a nossa mente – argumenta o Vasco – um budista escreveu um dia que a nossa mente, é como um céu cheio de nuvens, é preciso que elas se afastem para deixar passar a luz. A sociedade actual destrói o espírito, as pessoas vivem num total estado de ansiedade. A prática do dharma budista pode ser muito útil, e é a partir daqui que o Budismo me começa a interessar.
- Bah! Saltemos para o Vodka, estou farto de vinho – diz o Pedro tentando parar uma conversa que não vai, de certeza, levar a lado nenhum.
- Vodka? – pergunta o Andreas acordando, depois de dar um agitado e ruidoso ronco final.
- Diogo, vamos rolar? – pergunta o Vasco abanando-me a cabeça, que agora está enfiada nos meus braços e pousada na mesa.
- Nã, continuem vocês. Vou-me deitar, estou muito cansado, esta última semana tenho andado a deitar-me muito tarde.
- Estás um velho! – diz o Jaime.
Dou um beijo à Raquel. – Boa noite – digo a todos.
“Estás um velho?!!” Se eles soubessem como eu às vezes me sinto velho, prematuramente velho, um exilado emocional a quem foi negado o direito à juventude, o direito de viver como todos vintões devem, ou deveriam viver. Naquela constante inconsciência, tipicamente masculina, de quem se apaixona todos os dias, a todas as horas, pelas coisas em geral e principalmente, pelas mulheres...
(continua...)