segunda-feira, setembro 04, 2006

Henrique & Natasha

(...continuação)
De volta a casa a Luísa diz-me que o Henrique telefonou, e que nesse momento estava no aeroporto de Hong Kong vindo de um lugar qualquer que deve ficar perto da fronteira do Nepal entre Gyrong e Tingri, e que tinha comprado grandes quantidades de ópio e haxixe, e que havia visto alguém que achava ser com certeza o Edward Norton mas talvez fosse o Charlie Sheen, e sentia-se terrivelmente angustiado por ainda não ter esquecido a Natasha.

O Henrique: o Henrique viveu praticamente sem a companhia do pai, um magnata americano que vive, essencialmente, em viagens de negócios entre Nova-Iorque / Berlim / Paris e Londres. A mãe, ex-modelo, ex-potencial actriz de filmes independentes europeus, alcoólica convicta e viciada em Lexotan e Valium, simplesmente não vive. Refugia-se em passagens de modelos e eventos sociais que vão decorrendo em cidades como Paris, Madrid, Nova-Iorque ou Rio-de-Janeiro. Visitava esporadicamente o filho, que deixava com a mãe, uma francesa que casou com um português e veio, bastante nova, viver para o Porto. Era, portanto, a avó que lhe dava o que remotamente podemos chamar de acompanhamento familiar, isto até ele fazer vinte anos, altura em que a sua muito amada avó morreu.
No entanto o Henrique foi para nós o pai que não teve (apesar da similaridade entre as nossas idades), tornando-nos a todos qualquer coisa como irmãos, juntando num enorme conjunto todas as nossas divergências, homogeneizando-as numa enorme massa a que posso chamar de amizade. Ele é o elo que nos liga, que nos mantém no presente presos a um passado comum, como uma enzima que junta os códigos das nossas diferentes cromossomáticas personalidades. – Apercebo-me agora que detesto metáforas apesar de as usar com frequência nos meus pensamentos.- Dificilmente poderemos esquecer a prontidão com que as nossas mães nos confiavam à sua guarda, quando ele, por exemplo, nos levava ao cinema nos domingos à tarde; ou de como assumia o papel de irmão mais velho com uma eficácia surpreendente quando se tratava de proteger a Luísa e a Joana no seu tempo de meninas de escola; ou de como evitou que o Vasco se afundasse no abismo suicida que é o vicio das drogas duras quando atravessou momentos mais difíceis na sua vida; ou até de como demoveu o Pedro das suas ideias de iniciar o que chamava de a-minha-brilhante-carreira-política evitando assim que, enfim, o mundo se tornasse um lugar pior.

Quanto a mim, nunca me cansei de lhe pedir conselhos e ajuda, nem tão pouco ele se cansou de ouvir os meus relatos intermináveis, sobre o que eu achava ser na altura o sentido da vida, ou os meus problemas com uma ou outra namorada ou os meus pais. Posso ainda dizer que ele foi o principal impulsionador da minha veia artística sendo o primeiro a reparar no meu eventual jeito para a música. Por tudo isto, Henrique, estou-te eternamente agradecido.
Começou a viver sozinho quando a avó morreu, até conhecer a Natasha numa festa a que foi com a mãe, algures, no Brasil, em casa do Chico Buarque ou talvez do Caetano Veloso. Amaram-se à primeira vista. Trouxe-a para Portugal porque “ela completava-o” dizia ele, e com razão, formavam uma simbiose perfeita, eram como dois átomos de oxigénio que formam uma molécula que tanto precisamos para viver. Ela dava-lhe aquela estabilidade emocional que ele estava sucessivamente a perder, agora sem a avó e com a mãe cada vez mais empenhada na sua auto-destruição. E, enfim, teriam sido felizes para sempre,....se ela não tivesse sido mortalmente atropelada.
Há sete meses atrás, numa inesquecível noite de inverno, ou de inferno, um Range-Rover conduzido por um menininho-rico-do-papá completamente bêbado estatelou-se contra ela fazendo-a voar vinte metros, indo depois de capotar esmagá-la contra uma parede de betão, deixando-a praticamente irreconhecível. Irreconhecível ficou também o Henrique que se foi, compreensivelmente, abaixo, tornando-se uma pálida imagem do que era. Há cerca de seis meses o pai, o magnata nova-iorquino, num acesso de paternidade tipicamente americana ofereceu-lhe crédito ilimitado para uma viagem à volta do mundo, fazendo o Henrique desaparecer da nossa vista desde aí.
Os nossos contactos com ele têm-se resumido a umas conversas vagas de sentido, que vamos tendo nos telefonemas que faz enquanto anda disperso e perdido pelos cantos do mundo, onde o que diz de mais pessoal são coisas como: a inefabilidade de percorrer a África a ouvir o all over the world dos Pixies, ou as noites passadas na Índia a ouvir o Mr. Lawrence do Ryuichi Sakamoto, à procura de uma nova identidade espiritual que acha existir oculta nas extremidades dos seus dedos.
(continua...)