sexta-feira, setembro 15, 2006

Pensamentos #1

(...continuação)
Aparentemente devo ter adormecido, o sol já se está a pôr e começo a sentir-me frio e desconfortável deitado nesta areia húmida que se agarra a todas as partes do meu corpo. A uns cem metros de mim, um casal de namorados brinca inocentemente, deixando escapar de vez em quando uns guinchos de felicidade que me deixam enjoado.
Ouço a voz do Vasco por trás de mim :
- Cá estas tu! A Raquel está a ficar preocupada
- Eu...
- Imaginei que estivesses aqui – diz o Vasco enquanto tira uma caixa de um rolo de fotografias do bolso –, queres fumar um?
- Senta-te aqui e contempla a eternidade – digo num tom épico.
- Estamos filosóficos! Hã.
- Não estás a sentir a falta do Henrique? – pergunto já sabendo a resposta.
- Claro – responde. E depois com mais ênfase – claro que estou.
- Ele telefonou.
- Eu sei, falei com ele.
- Conseguiste sacar alguma coisa, ou ele estava com aquela típica apatia distante?– pergunto.
- Zero, hã-hã – responde abanando a cabeça.
- Estava em Hong Kong.
- Hum, hum. Foi encontrar-se com o pai, que o esperava no Harbour Plaza Hotel, e tenciona partir para a Tailândia ou Austrália dentro de dois dias.
A beleza desta praia é realmente surpreendente, estende-se languidamente num extenso areal branco, que por vezes reflecte os tons de vermelho que o sol, ao morrer, vai deixando no céu. O casal de namorados está neste momento a deixar a praia, vão abraçados como se dependessem um do outro para se mover.
- Que se pode esperar de nós? – digo deixando fugir um pensamento.
- Que se pode esperar de nós?! – pergunta o Vasco enquanto vai desfazendo cuidadosamente um cigarro.
- Sim, que se pode esperar de nós? Somos a geração do Fast Food e da MTV. Somos bombardeados constantemente com imagens que nos dizem o que devemos pensar e fazer. As mensagens são-nos impostas de uma maneira subliminar, tornando-nos a todos numa massa homogénea de autómatos.
- Diogo, em cada partícula do teu ser existe a beleza transcendente, daquilo a que tu chamaste há pouco, de eternidade. Nós provimos do universo mais profundo, devendo a ele a nossa imponderabilidade. Isto deve determinar a escala do teu pensamento e, por extensão, das tuas preocupações. – vai dizendo enquanto usa um isqueiro para queimar e desfazer a pedra.
- Sim, mas o que vou vestir amanhã preocupa-me – digo não sei se a sério ou a brincar.
- Deixa de ser pretensamente fútil, sei que não o és.
- Vasco, sinto-me mais seco que o Saara, não consigo fazer passar o mais pequenino fio de intensidade pelo meu espirito. Estou como os vagabundos de Beckett, sempre à espera de um Deus que não vai aparecer. Aquele Deus do amor e da criação em que o Henrique acreditava.
- Tu és Deus. Alegra-te com as coisas que estão à tua volta e pensa nelas como feitas à tua medida. Podes ter essa veleidade. Alegra-te e vive. - diz enquanto vai selando a mortalha.
(Se pelo menos o constante vento frio da tristeza não impedisse a vela da inocência e o fogo da paixão de acenderem dentro de mim.)
- És um tipo complicado, espero que tenhas consciência disso – diz num tom paternal.
- Eu sei, às vezes gostava de ser como tu, e ter a capacidade de ordenar o espaço entre as coisas que estão na minha mente, valorizando o silêncio do pensamento.
- As coisas não são o que parecem! - diz enquanto expele o fumo pela boca.
- Como assim?...
- Eu sofro da mesma incoerência de que todos nós sofremos, afinal não sou também feito de espirito e carne? Existe algo mais oposto? – vira-se para mim com uma ponta de malícia na cara e estende-me o charro – Queres?

***

sexta-feira, setembro 08, 2006

Comigo...

(...continuação)
- Queres vir a Muros? – pergunta à Raquel. – Nós vamos agora.
- Acho que não – respondo sombriamente –, vou ficar por aqui. Tenho umas músicas para pôr em ordem.
- Está tudo bem, Diogo?
- Está! Claro – simulo um sorriso.
- Andas estranho... – diz desconfiada.
- Impressão tua, são os domingos – digo, enquanto lhe dou um beijo que sei que a vai sossegar.
- Hum... Até já então.
- Hum... Até já
Espero que toda a gente saia para logo a seguir me meter no quarto e pegar na guitarra. Começo por tocar umas variações em Lá menor de uma música que ando a compor e que estou a pensar gravar em estúdio no fim do mês, acabando por dar comigo a tocar o wish you were here dos Pink Floyd onde por alturas da passagem “we´re just two lost souls swimming in a fish bowl, year after year” me vêm momentaneamente as lágrimas aos olhos. Depois de tocar umas cinco ou dez vezes essa música comecei a mexer nas coisas do quarto, à procura de algo como emoções esquecidas tentando limpar o pó que se acumulou na minha memória. Abri e fechei gavetas e armários, experimentei um velho chapéu de palha que costumava usar aqui, descobri algumas fotografias antigas, e um livro do Valerian o-agente-espacio-temporal que devia ter ficado a ler para não encontrar o que não procurava. E o que não procurava e muito menos precisava de encontrar era um poema que a Bárbara me havia dedicado pouco antes da nossa separação, há uns... três anos. A data está lá, mesmo no fim do último verso, para assegurar da inexorável passagem do tempo a pessoas para quem, tal como eu, três anos não são uma fracção de tempo mais prolongada que a diferença de ontem para hoje. Esta revelação deixa-me de rastos, atingido pelo monstro da realidade que me derrubou, trespassou e obliterou à velocidade de qualquer coisa como ‘Mach 5’. Decido afundar-me ainda mais: pego no discman, meto-me na bicicleta e saio disparado em direcção aos lugares em que estive pela última vez com a Bárbara aqui em Muros. Isto é o que me prescrevo como forma de tratamento.
Resolvo ir para a praia de Carnota com a intenção de me meter pela água dentro, pedalando até desaparecer, enquanto no discman passa repetidamente a you and me song dos Wannadies. Por fim, como seria de esperar, espalho-me ao comprido na areia, onde me deixo ficar deitado, sentindo-me como num filme em que a minha voz aparece em voz off juntamente com os sons do mar, das gaivotas e talvez do vento, apoiados por uma música ambiente qualquer. Falo agora de como a Bárbara me deixou para começar a andar com um tipo quinze anos mais velho que eu, e de como eu me fechei no quarto durante dois ou seis meses a tocar guitarra a fumar charros e a ouvir coisas como o love, hate, love dos Alice in Chains, o comin`back to me dos Jefferson Airplane ou o Crown of Thorns dos Mother Love Bone. Nessa altura pedia “tirem-me deste filme”.
(continua...)

segunda-feira, setembro 04, 2006

Henrique & Natasha

(...continuação)
De volta a casa a Luísa diz-me que o Henrique telefonou, e que nesse momento estava no aeroporto de Hong Kong vindo de um lugar qualquer que deve ficar perto da fronteira do Nepal entre Gyrong e Tingri, e que tinha comprado grandes quantidades de ópio e haxixe, e que havia visto alguém que achava ser com certeza o Edward Norton mas talvez fosse o Charlie Sheen, e sentia-se terrivelmente angustiado por ainda não ter esquecido a Natasha.

O Henrique: o Henrique viveu praticamente sem a companhia do pai, um magnata americano que vive, essencialmente, em viagens de negócios entre Nova-Iorque / Berlim / Paris e Londres. A mãe, ex-modelo, ex-potencial actriz de filmes independentes europeus, alcoólica convicta e viciada em Lexotan e Valium, simplesmente não vive. Refugia-se em passagens de modelos e eventos sociais que vão decorrendo em cidades como Paris, Madrid, Nova-Iorque ou Rio-de-Janeiro. Visitava esporadicamente o filho, que deixava com a mãe, uma francesa que casou com um português e veio, bastante nova, viver para o Porto. Era, portanto, a avó que lhe dava o que remotamente podemos chamar de acompanhamento familiar, isto até ele fazer vinte anos, altura em que a sua muito amada avó morreu.
No entanto o Henrique foi para nós o pai que não teve (apesar da similaridade entre as nossas idades), tornando-nos a todos qualquer coisa como irmãos, juntando num enorme conjunto todas as nossas divergências, homogeneizando-as numa enorme massa a que posso chamar de amizade. Ele é o elo que nos liga, que nos mantém no presente presos a um passado comum, como uma enzima que junta os códigos das nossas diferentes cromossomáticas personalidades. – Apercebo-me agora que detesto metáforas apesar de as usar com frequência nos meus pensamentos.- Dificilmente poderemos esquecer a prontidão com que as nossas mães nos confiavam à sua guarda, quando ele, por exemplo, nos levava ao cinema nos domingos à tarde; ou de como assumia o papel de irmão mais velho com uma eficácia surpreendente quando se tratava de proteger a Luísa e a Joana no seu tempo de meninas de escola; ou de como evitou que o Vasco se afundasse no abismo suicida que é o vicio das drogas duras quando atravessou momentos mais difíceis na sua vida; ou até de como demoveu o Pedro das suas ideias de iniciar o que chamava de a-minha-brilhante-carreira-política evitando assim que, enfim, o mundo se tornasse um lugar pior.

Quanto a mim, nunca me cansei de lhe pedir conselhos e ajuda, nem tão pouco ele se cansou de ouvir os meus relatos intermináveis, sobre o que eu achava ser na altura o sentido da vida, ou os meus problemas com uma ou outra namorada ou os meus pais. Posso ainda dizer que ele foi o principal impulsionador da minha veia artística sendo o primeiro a reparar no meu eventual jeito para a música. Por tudo isto, Henrique, estou-te eternamente agradecido.
Começou a viver sozinho quando a avó morreu, até conhecer a Natasha numa festa a que foi com a mãe, algures, no Brasil, em casa do Chico Buarque ou talvez do Caetano Veloso. Amaram-se à primeira vista. Trouxe-a para Portugal porque “ela completava-o” dizia ele, e com razão, formavam uma simbiose perfeita, eram como dois átomos de oxigénio que formam uma molécula que tanto precisamos para viver. Ela dava-lhe aquela estabilidade emocional que ele estava sucessivamente a perder, agora sem a avó e com a mãe cada vez mais empenhada na sua auto-destruição. E, enfim, teriam sido felizes para sempre,....se ela não tivesse sido mortalmente atropelada.
Há sete meses atrás, numa inesquecível noite de inverno, ou de inferno, um Range-Rover conduzido por um menininho-rico-do-papá completamente bêbado estatelou-se contra ela fazendo-a voar vinte metros, indo depois de capotar esmagá-la contra uma parede de betão, deixando-a praticamente irreconhecível. Irreconhecível ficou também o Henrique que se foi, compreensivelmente, abaixo, tornando-se uma pálida imagem do que era. Há cerca de seis meses o pai, o magnata nova-iorquino, num acesso de paternidade tipicamente americana ofereceu-lhe crédito ilimitado para uma viagem à volta do mundo, fazendo o Henrique desaparecer da nossa vista desde aí.
Os nossos contactos com ele têm-se resumido a umas conversas vagas de sentido, que vamos tendo nos telefonemas que faz enquanto anda disperso e perdido pelos cantos do mundo, onde o que diz de mais pessoal são coisas como: a inefabilidade de percorrer a África a ouvir o all over the world dos Pixies, ou as noites passadas na Índia a ouvir o Mr. Lawrence do Ryuichi Sakamoto, à procura de uma nova identidade espiritual que acha existir oculta nas extremidades dos seus dedos.
(continua...)